Como a estratégia de títulos multimoeda do Brasil apoia inadvertidamente a aliança entre a Rússia e a China

06/10/2025
By A Equipe de Análise do Defense.info

O retorno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao poder marcou uma mudança significativa no posicionamento internacional do Brasil, mas por trás do pragmatismo diplomático existe uma teia de contradições que revelam as complexas realidades da geopolítica contemporânea.

A ambiciosa estratégia de títulos em várias moedas do Brasil, projetada para diversificar a dependência do dólar, se envolveu em esforços mais amplos para minar as sanções ocidentais contra a Rússia e fortalecer a influência financeira global da China — criando um paradoxo incômodo para uma nação que se opõe oficialmente à agressão territorial.

A contradição é gritante: enquanto o Brasil condena publicamente a ocupação territorial da Ucrânia pela Rússia e se posiciona como um mediador neutro, suas escolhas financeiras e diplomáticas se alinham cada vez mais com sistemas que possibilitam as capacidades bélicas russas e expandem a influência chinesa.

A busca do Brasil por “autonomia estratégica” evoluiu para algo mais preocupante — uma forma de não alinhamento ativo que efetivamente apoia o agressor no maior conflito da Europa desde a Segunda Guerra Mundial.

A arquitetura financeira da contradição

A estratégia de títulos multimoeda do Brasil, conforme descrita em reportagem recente do Financial Times, representa muito mais do que uma simples diversificação financeira.

O plano de emitir os primeiros títulos soberanos panda do Brasil na China, ao mesmo tempo em que retorna aos mercados de capitais europeus após uma ausência de uma década, reflete um esforço calculado para reduzir a dependência dos sistemas financeiros dominados pelo dólar.

No entanto, essa estratégia tornou-se inseparável de esforços mais amplos de desdolarização que beneficiam diretamente a economia de guerra da Rússia.

A aritmética financeira parece convincente à primeira vista. Os títulos denominados em renminbi poderiam oferecer custos de empréstimo tão baixos quanto 2% para dívidas de 10 anos, em comparação com as recentes emissões do Brasil em dólares, com rendimentos de 5,68% para títulos de cinco anos e 6,73% para dívidas de 10 anos.

No entanto, essa economia aparente esconde um cálculo geopolítico mais profundo que vai muito além das necessidades imediatas de financiamento do Brasil.

A ânsia da China em oferecer essas condições favoráveis decorre de sua estratégia mais ampla de estabelecer sistemas financeiros alternativos que possam contornar as sanções ocidentais.

Como observaram autoridades de inteligência dos EUA, “a China ajudou a mudar o rumo da guerra na Ucrânia a favor da Rússia, fornecendo-lhe componentes e outros materiais necessários para sustentar sua indústria de defesa”².

A participação do Brasil nos mercados financeiros chineses fortalece esses mesmos sistemas que permitem a resiliência militar russa.

A infraestrutura do BRICS: construindo a tábua de salvação financeira da Rússia

O compromisso do Brasil com o BRICS vai muito além da solidariedade simbólica.

O bloco tem desenvolvido ativamente o que o ministro das Finanças russo, Anton Siluanov, descreve como “várias inovações financeiras no âmbito do BRICS, incluindo o sistema de pagamentos transfronteiriços que pode ser baseado, além de acordos bilaterais, em moedas nacionais, levando em consideração as tecnologias digitais e os ativos financeiros digitais”.

Este sistema BRICS Pay representa um desafio direto ao sistema de mensagens financeiras SWIFT, que tem sido fundamental para a aplicação das sanções ocidentais.

Como uma análise recente indica, “a militarização do dólar pelos EUA e seus aliados ocidentais acelerou o desenvolvimento do BRICS-Pay. O sistema facilita o comércio em moedas nacionais, tirando o dólar do circuito”.

As implicações para a Rússia são imediatas e substanciais.

Os principais bancos estabeleceram o que as autoridades chamam de “China Track”, um sistema de compensação de pagamentos que “gerencia transações comerciais e evita a exposição aos monitores ocidentais e possíveis sanções secundárias”.

Essa infraestrutura permite que a Rússia mantenha relações econômicas cruciais, apesar das sanções ocidentais abrangentes, com a participação do Brasil conferindo legitimidade e escala a esses sistemas alternativos.

A diplomacia de Lula em Moscou: pragmatismo ou facilitação?

A recente visita de Lula a Moscou para as comemorações do Dia da Vitória revela a complexidade do posicionamento do Brasil.

Durante suas reuniões com Vladimir Putin em maio de 2025, Lula enfatizou que “a posição do Brasil é contra a ocupação territorial de outro país”, ao mesmo tempo em que expressou disposição para “ajudar nas negociações, desde que os dois países envolvidos estejam abertos à nossa participação”.

Essa linguagem cuidadosamente calibrada reflete uma “não alinhamento ativo” — uma estrutura política que posiciona o Brasil como mediador, ao mesmo tempo em que sistematicamente enfraquece o isolamento que as sanções ocidentais pretendem alcançar.

No entanto, esse equilíbrio tem consequências reais para a trajetória do conflito.

Embora o Brasil tenha sido “o único membro do grupo BRICS a apoiar a resolução da Assembleia das Nações Unidas de 23 de fevereiro que instava a Rússia a retirar suas tropas da Ucrânia”, ele só o fez após apresentar emendas defendendo um cessar-fogo total — criando, na prática, uma cobertura diplomática para as posições russas.

Apoio material da China: o nexo financeiro-militar

A conexão entre os sistemas financeiros e as capacidades militares fica clara quando se examina o apoio da China aos esforços de guerra da Rússia.

O apoio material da China opera em paralelo a mecanismos financeiros que o Brasil ajuda a legitimar por meio de sua participação em instituições lideradas pela China.

Novo Banco de Desenvolvimento, criado pelos países do BRICS, compromete-se explicitamente a “utilizar financiamento em moeda local, em vez de depender exclusivamente do dólar americano”.

Embora apresentada como uma iniciativa de financiamento ao desenvolvimento, essa infraestrutura cria as bases para uma evasão mais ampla das sanções.

A escala dessa relação financeira é impressionante.

O comércio total da China com a Rússia atingiu um recorde de US$ 190 bilhões em 2022, fornecendo um apoio econômico crucial que permite a continuidade das operações militares.

A participação do Brasil em sistemas que facilitam esse comércio — por meio de mecanismos do BRICS e dos mercados financeiros chineses — torna-o um facilitador indireto, mas significativo, das capacidades bélicas russas.

A estratégia de desdolarização: além da política econômica

A adoção da desdolarização pelo Brasil vai muito além da política econômica tradicional, entrando no campo da transformação geopolítica.

À medida que os BRICS desenvolvem o que as autoridades descrevem como “uma alternativa ao SWIFT”, a iniciativa representa “um sistema de pagamentos transfronteiriços que proporcionaria uma alternativa ao SWIFT e minimizaria a dependência do dólar”.

As implicações estratégicas são profundas. Mais imediatamente relevantes para o conflito na Ucrânia, esses sistemas fornecem à Rússia uma infraestrutura financeira crucial que reduz a eficácia das sanções ocidentais.

A expansão do BRICS acelerou essas tendências, com o bloco agora incluindo Egito, Etiópia, Irã, Emirados Árabes Unidos e, a partir de 2025, Indonésia.

Países parceiros, incluindo Argélia, Bielorrússia, Bolívia, Cuba, Cazaquistão, Malásia, Nigéria, Tailândia, Turquia, Uganda, Vietnã e Uzbequistão, expandem ainda mais a rede.

Essa coalizão crescente cria o que o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, descreve como “um diálogo igualitário entre representantes da Maioria Global e do Ocidente na esfera financeira e econômica”.

A perspectiva ucraniana: reconhecendo a ameaça

Autoridades ucranianas começaram a reconhecer a ameaça representada por iniciativas financeiras aparentemente neutras.

Em abril de 2025, o presidente Volodymyr Zelensky “convocou o embaixador da RPC em Kiev depois que cidadãos chineses foram capturados lutando no leste da Ucrânia” e afirmou que “mais de 150 cidadãos chineses estavam lutando ao lado da Rússia na Ucrânia”.

Zelensky afirmou posteriormente que “a RPC estava fornecendo pólvora e artilharia à Rússia”.

Este envolvimento militar direto ocorre em paralelo com o apoio financeiro que as políticas do Brasil inadvertidamente reforçam.

Como Zelensky observou, “sem o mercado chinês para a Federação Russa, a Rússia estaria sentindo um completo isolamento econômico”.

A participação do Brasil nos sistemas financeiros chineses ajuda a impedir que esse isolamento se torne realidade.

A interligação entre o apoio financeiro e militar torna-se clara quando se examinam as sanções recentes.

Em dezembro de 2024, “a UE incluiu sanções contra várias entidades chinesas e de Hong Kong por apoiarem as forças armadas da Rússia” e, em fevereiro de 2025, “a UE acrescentou 25 entidades chinesas e de Hong Kong a uma lista negra por contornarem as sanções contra a Rússia, incluindo uma fábrica de drones em Xinjiang”.

A contradição fiscal: crise interna, ambição internacional

A busca do Brasil por financiamento alternativo ocorre em um contexto de deterioração dos indicadores fiscais internos, o que complica seu posicionamento internacional.

O déficit público nominal do país aumentou para 7,8% do PIB durante o governo Lula, enquanto a dívida bruta do governo atingiu 76% do PIB — uma das mais altas dos mercados emergentes.

O economista-chefe da Goldman Sachs para a América Latina alerta que o Brasil precisa “ajustar o déficit orçamentário em três pontos percentuais do PIB para tornar as finanças sustentáveis”, descrevendo o governo como constantemente “pensando em novas maneiras de gastar dinheiro”.

Essa pressão fiscal cria incentivos para que o Brasil adote qualquer fonte de financiamento que ofereça condições favoráveis, independentemente das implicações geopolíticas mais amplas.

A contradição fica evidente quando se consideram os custos de hedge cambial. Embora os títulos em renminbi pareçam mais baratos, “as taxas efetivas podem chegar a quase 14% quando hedgeadas de volta em reais brasileiros”, o que, na prática, excederia os atuais custos de financiamento interno do Brasil.

Isso sugere que o apelo do financiamento chinês decorre de considerações estratégicas, e não puramente econômicas.

Precedentes históricos e continuidade

O posicionamento atual do Brasil reflete padrões históricos mais profundos que transcendem a política partidária.

Como alguns analistas observam, “Moscou é há muito tempo um amigo de longa data de Brasília, oferecendo uma relação livre das complexidades e críticas que moldaram os laços do Brasil com o Ocidente”.

Essa relação proporcionou benefícios consistentes ao longo de diferentes administrações.

“Os presidentes de centro-direita e extrema direita do Brasil também usaram a relação Brasil-Rússia em seu benefício”, com até mesmo Jair Bolsonaro dependendo do “BRICS como uma tábua de salvação diplomática” quando isolado das potências ocidentais.

A continuidade sugere que há fatores estruturais, e não ideológicos, por trás do posicionamento do Brasil.

O padrão se estende às instituições do BRICS de forma mais ampla.

Durante a presidência de Dilma Rousseff, “o governo se recusou a ceder à pressão ocidental para cancelar o convite ao presidente russo Vladimir Putin para uma cúpula do BRICS no Brasil após ele invadir a Península da Crimeia” em 2014.

Esse precedente histórico estabeleceu a relutância do Brasil em permitir que considerações geopolíticas se sobreponham à solidariedade do BRICS.

A visão multipolar: autonomia estratégica ou neutralidade moral?

A liderança brasileira enquadra sua abordagem através das lentes da “multipolaridade benigna” e da “multipolaridade cooperativa” — conceitos que “consideram o surgimento da multipolaridade não como uma ameaça, mas como uma oportunidade”.

Essa visão vê a Rússia como um polo legítimo em um sistema multipolar, independentemente de sua conduta na Ucrânia. Durante sua visita a Moscou, Lula enfatizou que “o Brasil defende o fortalecimento do multilateralismo” e criticou aqueles que “querem voltar às teorias protecionistas”.

No entanto, essa abordagem multilateral efetivamente legitima a participação russa na governança global, apesar da agressão territorial em curso.

Interdependência econômica e dependência estratégica

As relações do Brasil com a China e a Rússia envolvem dependências econômicas significativas que restringem as opções políticas. A China é o maior parceiro comercial do Brasil, e a iniciativa dos títulos panda surgiu da visita de Estado de Lula a Pequim.

Essas dependências operam dentro de um quadro mais amplo de cooperação Sul-Sul que a liderança brasileira considera essencial para o desenvolvimento.

O desafio está em distinguir entre parceria econômica legítima e facilitação da agressão territorial por meio de sistemas financeiros que contornam sanções internacionais.

A dimensão europeia: contradições diplomáticas

A busca simultânea do Brasil pelo retorno ao mercado financeiro europeu revela contradições adicionais em sua estratégia. A União Europeia vinculou explicitamente a “expansão do comércio bilateral” à oferta de acesso ao mercado de títulos ao Brasil, criando incentivos para o cumprimento das sanções que os compromissos do Brasil com o BRICS prejudicam.

Autoridades europeias estão cada vez mais preocupadas com as contradições no posicionamento do Brasil. A ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, observou que “o crescente apoio chinês à guerra da Rússia contra a Ucrânia tem impacto sobre nossas relações” e afeta “os interesses centrais da Alemanha e da Europa em matéria de segurança”. Preocupações semelhantes se aplicam ao apoio indireto do Brasil por meio dos sistemas financeiros chineses.

No entanto, o posicionamento geopolítico mais amplo do Brasil pode se revelar mais problemático do que seus indicadores fiscais para os investidores europeus, cada vez mais preocupados com a exposição à violação de sanções.

A participação do Brasil nos sistemas financeiros liderados pela China coloca o país em um padrão mais amplo de apoio indireto às capacidades bélicas da Rússia.

Implicações políticas e trajetórias futuras

Embora o Brasil possa não fornecer diretamente equipamentos militares, suas escolhas financeiras fortalecem os próprios sistemas que permitem o apoio chinês à produção militar russa.

Os líderes brasileiros podem acreditar genuinamente que estão perseguindo interesses econômicos legítimos, mantendo a neutralidade diplomática.

No entanto, o efeito cumulativo de suas escolhas — participar dos sistemas financeiros chineses, legitimar a participação internacional da Rússia e desenvolver mecanismos de pagamento que contornam as sanções — cria um apoio material à agressão territorial em curso.

O desafio para os formuladores de políticas internacionais reside em reconhecer como escolhas econômicas aparentemente neutras podem se tornar envolvidas com ameaças à segurança.

A estratégia de títulos multimoeda do Brasil pode parecer uma diversificação financeira direta, mas seu contexto mais amplo revela como a política econômica se tornou inseparável do posicionamento geopolítico em uma era de grande competição entre potências.

Imagem em destaque gerada por um programa de IA.

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